• 8 de maio, 2024 01:57

Cortes de Milei empobrecem classe média argentina, aponta especialista

ByTarso Araújo

fev 28, 2024

Consideradas “ousadas” e promissoras pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e com potencial catastrófico para o povo argentino, as medidas econômicas anunciadas por Javier Milei, recém-empossado presidente da Argentina, no primeiro ato de seu governo, já forma alvos de protestos no país.

O governo Milei anunciou um superpacote (“pacotazo”, em espanhol) com cortes de Ministérios e do funcionalismo público, aumento de impostos para importação e uma forte desvalorização do peso. Além disso, a publicidade estatal foi suspensa e todas as obras públicas congeladas.

No mesmo ato também foram suspensos os subsídios do governo no transporte público e os combustíveis tiveram reajuste para cima.

Opera Mundi, o economista e professor de Política Econômica na Universidade de Buenos Aires (UBA) Horacio Rovelli falou a respeito das políticas adotadas pelo governo Milei e olha para o pacote de medidas econômicas com indignação.

Para ele, que foi diretor Nacional de Programação Macroeconômica no Ministério de Economia e Finanças da Argentina de 2009 a 2011, durante o primeiro mandato da ex-presidente Cristina Kirchner, a desvalorização da taxa de câmbio oficial foi “terrível”.

Com isso, Rovelli avalia que a pobreza no país irá aumentar, analisando que setores médios da Argentina também serão afetados.

Confira na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Horacio Rovelli:

Opera Mundi: primeira coisa que eu gostaria de entender é se, efetivamente, para as pessoas comuns, já é possível sentir os efeitos das medidas de Milei? 

Horacio Rovelli: a desvalorização da taxa de câmbio oficial foi terrível, de mais de 100%. Isso impactou imediatamente nos preços, principalmente da cesta básica alimentar e os alimentos, como pão, carne, legumes, frutas, arroz, macarrão e óleo. Então, o impacto foi muito forte no bolso da população.

Houve uma transferência de recursos da população para os setores que têm dólares. Todos nós que vivemos com pesos, sejamos trabalhadores, aposentados, pensionistas e aqueles que nos vendem, comerciantes e industriais que vendem para o mercado interno, perdemos uma grande parte de nossa renda e transferimos para os setores que recebem dólares. Ou seja, quem são os setores que recebem dólares? Os exportadores, credores externos, aqueles que enviaram dinheiro para o exterior.

Então, aqui há uma brutal transferência de renda dos trabalhadores assalariados e aposentados, que são trabalhadores passivos, e dos empresários que estão ligados a produtores ou comerciantes, que estão ligados ao mercado interno em favor dos credores externos, dos exportadores e dos que enviaram divisas para o exterior.

Segundo um estudo feito pela Central Autônoma dos Trabalhadores (CTA), essa transferência foi de 31 bilhões de dólares nos quatro anos anteriores. 31 bilhões de dólares. Mas nos quatro anos de Alberto Fernández mais que duplicou. Os dados vão até junho de 2023 e a transferência totaliza 70 bilhões de dólares. Ou seja, estamos passando por uma brutal transferência dos setores com renda em pesos para aqueles que têm dólares.

Essa avaliação vem aprofundar essa brutal transferência de recursos da população com renda em pesos para aqueles que recebem dólares.

Eu vi algumas fotos com os cartazes dos supermercados, onde o preço da carne, por exemplo, estava quase o dobro. Por outro lado, Milei dobrou a Asignación Universal por Hijo (Bolsa Família argentino), e alguns benefícios sociais também foram aumentados. Isso se equipara? Ou seja, esse aumento nos preços é compensado por esse aumento dos programas sociais? 

Claro que não, porque os planos e benefícios abrangem apenas uma pequena parcela da população. Nós temos 47 milhões de habitantes na Argentina e os planos sociais, no máximo, podem abarcar cerca de 4 milhões de pessoas.

Além disso, a base, ou seja, o que estão dando como subsídio para esses setores é muito pouco dinheiro. Portanto, mesmo que alguém se inscreva, nunca será suficiente para alcançar o valor da cesta básica de alimentos. Ou seja, temos um grave problema de pobreza.

É ainda mais, mas a Argentina tem 40% da população vivendo abaixo da linha de pobreza. E, dentro desses 40%, a maioria são crianças. Metade das crianças na Argentina, na faixa etária de zero a 14 anos, são pobres. Portanto, mesmo que você tenha aumentado os planos sociais, o impacto é mínimo porque a base é muito pobre, não é suficiente para ter acesso à cesta básica de alimentos. [Esses programas] não chegam sequer a 8% dos beneficiários desses planos. É insignificante diante do total da população argentina.

A classe média argentina é um setor muito importante. Agora, com essa inflação crescente, mais o fim dos subsídios para transporte e outros, como ficará? Ou seja, é de se imaginar que muitos mais vão chegar a essa situação de pobreza, não? 

Com certeza, com certeza a pobreza vai aumentar. Os setores médios também serão afetados pelo que você acabou de dizer.

Uma das coisas que afetou os setores médios é que eles economizam em depósitos a prazo fixo em peso. Economizam nos bancos locais e isso foi reduzido pela metade. Ou seja, a desvalorização fez com que o poder de compra que esses depósitos tinham fosse reduzido pela metade e o governo hoje reduziu ainda mais a taxa de juros.

Era pago uma taxa de 133% ao ano e agora reduziu para 110% ao ano. Com isso, está desvalorizando as economias que estão perdendo em termos de capacidade de compra real. Portanto, a classe média está sendo duplamente punida. Por um lado, estão perdendo a economia que têm em peso, que está sendo transferida aos bancos. E, por outro lado, a soma dos preços em geral, e principalmente o combustível, aumentou fortemente.

Em um mês, o combustível aumentou 100%. A desvalorização deu um novo impulso, mas já vinha sendo desvalorizado. Ou seja, a classe média tem que pagar exatamente o dobro para encher o tanque. Estamos em uma situação muito ajustada, muito apertada pela política implementada pelo governo de Javier Milei.

Bem, algo que se fala, que está repercutindo no Brasil, é uma possível situação de estagflação. Ainda acredito que não há consenso entre os economistas de que isso esteja acontecendo ou vá acontecer na Argentina. Qual é a sua opinião a respeito disso? Podemos ter uma situação de estagnação junto com inflação? 

Com certeza. Não é uma estagflação, é pior, é uma recessão econômica. Há queda do Produto Interno Bruto (PIB). Na Argentina, mais de 70% do que é produzido destina-se ao mercado interno. Se você reduz o mercado interno, o PIB interno cai. Isso está comprovado, é um teorema que foi feito pelo cubano Carlos Díaz Alejandro.

O teorema de Carlos Díaz Alejandro mostra que quando a taxa de câmbio sobe, ou seja, quando o preço do dólar aumenta, o salário cai porque nós consumimos alimentos e exportamos alimentos. Assim, as empresas preferem exportar soja, arroz, óleo, carne e leite do que vender para o mercado interno.

Ou seja, quando você desvaloriza, você prejudica o mercado interno e mais de 70% da economia argentina atual destina-se ao mercado interno. Portanto, a desvalorização é diretamente proporcional à recessão econômica ou vice-versa, como Carlos Díaz Alejandro coloca.

Por que a recessão econômica é pior do que a estagflação? 

Porque há queda no PIB, há queda na riqueza. Nós somos um país que, segundo a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), temos um Produto Interno Bruto de 480 bilhões de dólares este ano. Se o PIB cair quatro ou cinco pontos, você está deixando de produzir 25 ou 30 bilhões de dólares.

Ou seja, há uma recessão porque há queda no Produto Interno Bruto. Não é que a economia estagnou, ela está caindo. Se estagnasse, seria igual em termos vegetativos. A população argentina cresce 1,8% ao ano de forma vegetativa. E se você cai quatro ou cinco pontos, percebe que per capita é pior ainda?

Eu ouvi com muita atenção os anúncios de Luis Caputo, ministro da Economia, e tentei compreender o raciocínio, a lógica que eles estão tentando vender à população. Dizer que não há dinheiro e que serão necessários cortes, de certa forma, há uma lógica nisso, porque se não há dinheiro, é preciso retirar de algum lugar e vai ser do bolso das pessoas.  

Agora, me chama a atenção que não se diz à população: ‘olha, isso vai ser por dois, três ou oito meses. Inclusive, disseram que isso vai ser por mais de dois anos. Ou seja, como é possível que as pessoas suportem isso? Ou seja, qual é a lógica deste governo em trazer essa situação no início do governo e sem um prazo, sem um horizonte de bem-estar para essa população? 

Olha, em primeiro lugar, o ajuste na Argentina é feito para pagar uma dívida externa que não beneficiou o povo argentino.

O governo de [Mauricio] Macri, que vai de dezembro de 2015 até dezembro de 2019, se endividou em mais de 100 bilhões de dólares. Macri contraiu dívidas, das quais quase metade é com o Fundo Monetário Internacional (FMI), cerca de 45 bilhões de dólares.

Não foi comprado um tijolo sequer. Não é que se construíram casa. Não foi comprado sequer um tijolo. Esse dinheiro não foi utilizado, por exemplo, para estatizar os portos — o porto de Rosário, que é o mais importante que temos — para que tenhamos novamente a soberania do rio Paraná, para que criemos uma marinha mercante. Não foram construídas moradias… nada foi feito. Esse dinheiro desapareceu.

E o covarde do [ex-presidente] Alberto Fernández, que havia prometido em seu discurso de inauguração das sessões ordinárias de 1º de março de 2020, que investigaria isso até as últimas consequências, não o fez. Portanto, estamos fazendo um brutal ajuste na população — dizem que é preciso fazer esse ajuste para pagar uma dívida que não beneficiou o povo argentino.

Segundo, tivemos um superávit comercial brutal nos anos de 2020, 2021 e 2022. As exportações acumuladas superaram as importações nesses três anos em 34 bilhões de dólares. Em 2023 não porque tivemos uma seca calculada de 15 a 20 bilhões de dólares a menos de exportação. Então tivemos déficit comercial devido à seca. Mas nos três anos anteriores não, então onde foi parar esse superávit comercial?

Foram dados às empresas 28 bilhões de dólares para que pagassem suas supostas dívidas. Por exemplo, foram dados recursos à Shell da Argentina, que depende da filial inglesa, para que pagasse a Shell da Inglaterra. Ou seja, aqui há uma estafa ao povo argentino, uma fraude que, na época de Macri, desapareceu com 100 bilhões de dólares. E isso não foi investigado.

E uma estafa no governo atual que fez todo o povo argentino usar quase todo o superávit comercial para pagar uma dívida que é privada. É o povo argentino que paga. As empresas privadas compram dólares a uma taxa de câmbio oficial para pagar suas supostas dívidas, que também são ilegais na maioria das vezes.

Então, aqui, temos uma relação causal muito grande: a fuga de capitais da época de Macri, mais o pagamento de juros e a dívida privada da época de Alberto Fernández. Isso nos traz a essa situação limite. E a partir daqui, um ajuste brutal é feito no povo argentino para pagar isso que beneficiou uma minoria rentista e parasita deste país.

Insisto em um ponto. Em uma entrevista de Caputo ao canal La Nación +, onde ele aparece muito tranquilo, ele dizia que Milei passou anos explicando às pessoas, em seus programas de televisão, a lógica do que está acontecendo, ou seja, que os governos anteriores estafaram — vamos usar esse termo — a população e agora é necessário pagar um preço, mas a população está de acordo e por isso o elegeu. 

Assim, como trazer essa compreensão, que é um pouco complexa, de que estão pagando uma dívida que não é deles e que foi contraída por Macri? Estou falando disso em um momento em que Milei está avançando muito e já começa a criminalizar o protesto social para tentar impedir as pessoas de saírem às ruas para protestar…

Olha, em primeiro lugar, o atual ministro da Economia, Santiago Bausili, presidente do Banco Central, Joaquín Cottani, secretário de Políticas Econômicas da Nação, e Vladimiro Werning, vice-presidente do Banco Central, os quatro trabalham para a BlackRock. Os quatro têm residência legal em Manhattan, no coração financeiro de Nova York. Os quatro.

A BlackRock na Argentina tem a maior participação na Pampa Energia, na Telefônica Argentina, na [mineradora] Glencore. Bem, em várias outras empresas, como a Coca-Cola, o Canal 11. E elas são as principais tomadoras de dívida na época do Macri. Foram as primeiras a comprar dólares e fugir.

A BlackRock não acabou com o governo Macri. Ao contrário, se fortaleceu no governo de Alberto Fernández e se fortaleceu ainda mais no governo de Milei. As quatro principais figuras que controlam o caixa, que controlam a administração financeira da República Argentina hoje, os quatro são funcionários da BlackRock.

Caputo é um mentiroso. É um cínico e um mentiroso, ele abusa da ignorância da população argentina, que não diz isso a ele: ‘você é funcionário da BlackRock e a única coisa que você está garantindo é que a dívida da BlackRock não seja investigada e que o povo argentino pague essa dívida que não nos beneficiou’.

E o povo argentino vai pagar essa dívida? Vai aceitar o ajuste? 

Tivemos um teste importante, com convocação de protestos.

Sabe o que te faz tomar mais consciência de tudo? Quando você não consegue alimentar seus filhos. Quando você consegue alimentar seu filho, a paciência acaba. Você pode se privar de sair, pode parar de comer, mas não pode permitir que meu filho fique sem comida, roupa ou material escolar. É aí que acaba.

Estou convencido, não os idiotas que votaram em Milei, mas um amplo setor da população consciente sairá às ruas e enfrentará esse governo de psicopatas manipulados por BlackRock e pelos grandes fundos dos Estados Unidos.

Há algo mais que você queira dizer que não perguntei e que gostaria de acrescentar? 

Primeiramente, a China disse que não renovaria o financiamento de US$ 6,5 bilhões (R$ 31,6 bilhões) a partir de linha de swap cambial para a Argentina porque o país não quis se juntar ao Brics +. Esse governo reacionário, lacaio do império ianque, não quis se juntar ao Brics [bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul].

Fez uma desfeita ao Brasil e à China, porque ambos nos convidaram a participar do Brics ampliado. Não quisemos nos juntar e agora foram pedir dinheiro emprestado. E Pequim disse ‘muito bem, não temos dinheiro’ e não deram o dinheiro.

E os norte-americanos não deram a mínima importância. [Joe] Biden, que de idiota não tem nada, pode ser velho e senil, mas tem assessores. Ele não recebeu Milei, que foi vê-lo. Esse governo vai terminar mal. Milei não termina o mandato.

Desde já estou te dizendo, em dezembro de 2023, Milei não termina o mandato. Eu não sei quanto tempo o governo vai durar. Agora vai demorar um pouco mais, mas eles terão que sair.

Só mais uma coisa… você acha que a entrada efetiva da Argentina no Brics daria uma sobrevida a Milei? 

Não, também não. Porque a China e Brasil sabem quem é Milei. Sabem que Milei é um desequilibrado, mas sabem dos interesses que o rodeiam. É o oposto do Brasil e da China.

Os que estão próximos de Milei são todos homens ligados aos Estados Unidos. Laura Richardson, a comandante sul do Exército norte-americano veio aqui dizer que não permitiria a interferência chinesa em nossa região, em nossa puna [vegetação típica dos Andes]. Ela disse em inglês, ‘nossa puna’, como se a puna fosse dela. A puna pertence à Bolívia, ao Chile e à Argentina. Bem, nessas condições, nenhum deles derramarão uma lágrima por Milei e a equipe de mercenários que possui, a equipe de vende-Pátria que possui.

Aliás, deixe-me dizer a você o último. Quando a independência foi declarada em nosso país, o deputado Pedro Medrano disse, em 1816, que éramos livres da Espanha e de toda potência estrangeira. Black Rock não é um país, mas sim uma potência estrangeira. E aquele que não fosse [independente] seria considerado um infame traidor da Pátria. E estes são infames traidores da Pátria.

Publicado no site Opera Mundi

Foto: REUTERS/Agustin Marcarian

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *