• 13 de maio, 2024 14:21

Cadê o povo? Por Marcos Leonel

ByDudu Correia

mar 18, 2022

FALA LEONEL

POR MARCOS LEONEL

Cadê o povo?

 

A expressão “cadê” é uma variação de outra palavra. O povo, no Brasil, é também uma variação de si mesmo, às vezes se usa o povo e outras vezes o povo é usado. Nesse caso, em linguagem referencial, que se concerne ao ano de 2022, o povo desertou dele mesmo. Praticamente o povo foi reduzido a uma linguagem fática, um murmúrio, um abrir de boca de enfado, um ruído desalentador. Quando o povo deserta, nada cresce ali, pois houve o abandono da luta, do compromisso inalienável de ser povo. Nunca o povo foi tão humilhado na história do Brasil, como ele está sendo por Bolsonaro e sua trupe circense de picaretas. O espetáculo já começou faz tempo, há três anos e quatro meses. Por esse tempo inteiro o palhaço faz do povo a sua melhor piada, com requintes de grosseria. O povo está posto em catarse, sofre narcotizado, a necrose espalmada do tecido social. São palmas cheias de digitais, são risadas fabricadas, implantadas onde não existe razão nenhuma para se rir. São gargalhadas transformadas em gargalos, que ridicularizam o povo e estrangulam o povo, que se queda facilmente, em silêncio, sem ruas, sem explicação nenhuma.

A bem da verdade o povo já foi outro, já se organizou e protestou em pequena escala, desde que o discurso do ódio se fez carne, também em pequena escala. A pandemia fez com que o povo tivesse medo dele mesmo e justificou fugas e recuos, principalmente quando ela foi transformada em máquina de matar o próprio povo, de forma arquitetada, com a engenharia sofisticada da escória. Em linguagem conativa, nesse ínterim, as redes sociais foram reinventadas precocemente como supositórios emocionais, onde o povo ali se refugiou em cápsulas digitais. É dessas trincheiras virtuais que emanam notas de repúdio, textos virulentos, sacadas engraçadinhas, aulas descoladas de um marxismo dissoluto, patrulhamentos estoicos, e uma série reducionista de ações distorcidas do pertencimento indelével do politicamente correto. São apenas cenários diferenciados de um roteiro que enquadra o mesmo deserto que hora habita o povo, despovoado de si mesmo, negligenciado em sua essência máxima de ser a razão única do estado. O ser e o estar no Brasil se tornaram subterfúgios do descarte. O Brasil está sendo jogado na lata de lixo da sua própria história. O povo foi traído até na função de gari, uma vez que ele foi posto na condição de restos.

Mas nada impede que a vida transcorra normalmente, nem mesmo o risco de se transformar em indigente de um minuto para outro. A rotina cotidiana do povo brasileiro é derreter, no calor ou no frio. Na calada da noite ou a céu aberto, nas barbas de todo mundo. Há um grande trunfo para a letargia da esculhambação: “quem está sendo humilhado pela fome e pelo desemprego é o outro, não eu”. Isso povoa as nuvens digitais, isso abastece o humor tropical dos memes que tripudiam a desgraça coletiva, onde não existe diferenças funcionais entre o eu e o outro. Isso abastece a cara de paisagem camuflada nas iras das redes sociais, a meritocracia da blindagem social, muitas vezes proporcionada por um concurso público ou uma indicação política, mantém intacta a condição pervertida do elitismo de quem tem um pouco mais, além daquele que tem pouco, além daquela que não tem nada, apenas a vontade de não ser povo indo para o abate. Esses são raros em atitudes de dar a cara ao vento das ruas, assumindo a condição de povo, que protesta porque navegar é preciso. Esses são fartos na condição de ter levado um pé na bunda do estado e terem sido jogados no olho da rua, como indigentes.

O ultra conservadorismo nazista não difere em nada da imobilização latente do povo no que tange a permissividade. Não há nenhuma explicação plausível para a motivação reativa do povo. Todas as causas são conhecidas, são todas elas sofridas coletivamente. Ninguém precisa de teoria nenhuma sobre a política de preços dos combustíveis da Petrobras, como também não existe necessidade da importação em massa dos mais sofisticados detectores de mentiras, usados pela Cia, Gestapo, Kgb, ou outra quartelada qualquer. O estelionato político de Bolsonaro é ensurdecedor. A ululância entreguista de Bolsonaro e sua gangue é capaz de cegar com sua obviedade intensa. O cinismo, o deboche, o escárnio e o proposital parecem impotentes em despertar o senso mínimo de ação da esquerda, que se mostra incapaz de entender o momento histórico, tal a grandeza das picuinhas das cartilhas revolucionárias. Só é possível exorcizar demônios de araque em cultos neopentecostais em armazéns transformados em templos, em milagres transformados em selfs. Não se tem notícia de ressuscitação de mortos, nem no imaginário virtual. Enquanto se discute a segunda vinda de Trotsky, de Lenin, de Che, de Lamarca, de Lampião, de Jack, o estripador, a coisa tende a se manter no poder. Quando o povo resolver ir para as ruas, não haverá mais ruas, tudo será transformado em guetos.

Se existe algum momento para o povo ser povo e ter razão de povo, a hora é essa, já se foram alguns minutos extremamente longos. Se há uma preocupação latente em manter a ordem, que na realidade é a ordem unida dos quartéis, é porque de fato corre pouco sangue vermelho nas veias abertas do Brasil. Se existe algum receio em provocar tensão social, evitando o confronto ideológico, é porque de fato alguém faltou na aula de necessidade básica do povo. Se existe algum momento para o povo protestar e fazer valer a sua vontade de verdadeiro dono do país, a hora é essa, já se foram alguns minutos extremamente longos. O vazio das ruas sem protestos é o mesmo vazio que impera nos sindicatos sem greves. Só quem está na rua são os movimentos mais urgentes, como MST, MTST e 8M, além de corajosas lideranças indígenas, salvo algum esquecimento inadvertido. O resto virou lenda urbana. O silêncio do povo é o silêncio da conformação, do desalento. A imobilidade popular é a imobilidade da esquerda elevada à quinta potência. A esquerda gourmet é também uma expressão variante, ela também já foi esquerda festiva. Na linguagem metalinguística, ela hoje está mais para a vírgula que separa o sujeito de si.

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