• 19 de maio, 2024 23:31

Amnésia de céu azul. Por Íris Tavares

ByDudu Correia

fev 18, 2022

 

Nos últimos dias aquela chuva copiosa que caiu sobre a cidade imperial de Petrópolis (RJ), fez ressurgir o caminho do diluvio que diluiu e tragou escombros das construções, das coisas grandes e pequenas que compõem o patrimônio de particulares e os bens públicos a serviço da coletividade. A ocupação indevida das áreas de risco dos morros e das encostas não foram obstáculos para a inundação que abriu crateras por onde passou e soterrou corpos. Vidas foram interrompidas e destroçadas. O pedido de socorro ficou engasgado em meio ao espanto de muitos ao testemunharem a força da natureza. Uma tragédia que poderia ser evitada como tantas outras que se somam ao longo desse modelo de crescimento desenfreado que promove o desequilíbrio e o divórcio do ser humano com a natureza. Podemos refletir sobre vários aspectos dessa crônica das mortes anunciadas, assim como das lições não aprendidas. A primeira delas é que ao mesmo tempo que violamos a natureza, violamos a nós mesmos, em segundo é necessário que se compreenda o grande embuste da economia clássica ao pregar a condição inferior da natureza para, intencionalmente, submetê-la aos interesses daqueles que acreditam ser superior a ela.

A igualdade dos seres vivos com a natureza está presente no DNA de ambos. “A terra é sempre propriedade dos que existem sob a terra, ou seja, dos ancestrais”. Não calaremos mediante o amordaçar das vozes antes e depois da tragédia, isolados em lugares reais e virtuais em que se ignoram a memória, o emudecimento pode sugerir outras vozes, convenientes aos detentores do poder, os legítimos herdeiros da indiferença, adoradores do caos que almejam ocupar o vazio destinado às nossas referências perdidas no diluvio carregado de lama e dor.

Em Estórias abensonhadas, Mia Couto nos alerta.  “Aquele chão ainda estava a começar, recém-recente. As sementes ali se davam bem, o verde se espraiando em sumarentas paisagens. A vida se atrelava no tempo, as árvores escalando alturas. Um dia, porém, ali desembarcou a guerra, capaz de todas as variedades da morte. Em diante, tudo mudou e a vida se tornou demasiado mortal”.

De todo modo o alerta que resultou no pacto global sobre as mudanças climáticas não conseguiu, de fato, sensibilizar a sociedade brasileira sobre as medidas de prevenção e a urgência das políticas públicas de saneamento básico, além da garantia do acesso as moradias em áreas para habitação segura e digna. Nos perguntamos sobre o critério na escolha de prioridade dos governos locais, desde o plano diretor da cidade, o código de obras e posturas, a ocupação do solo e a política ambiental adotada. Existem apenas na formalidade? Senão qual o impacto dessas políticas mediante o descontrole e a destruição do meio ambiente?   Em horário nobre nos meios de comunicação de massa a manchete que gera audiência e comoção é um flanco aberto. Por outro lado, essa mesma mídia comercial replica a campanha de criminalização do movimento organizado em defesa do direito de moradia, que luta e ocupa áreas qualificadas para construção de habitação de interesse social.

Pressupõe-se que os fenômenos naturais fazem parte de um longo capitulo que atravessa a história da humanidade. Desde a pré-história ao mundo contemporâneo, a natureza é soberana e preponderante, ocorre que os humanos e a sua porção destrutiva declararam guerra a natureza e dessa forma condenaram todos nós a vivermos numa redoma de vidro sob a mira ignorante dos poderosos e seus exércitos suicidas. Em nome de todas as almas levadas pelo diluvio e a potência da voz que nunca silenciou, clamamos pela lucidez dos carrascos que comandam esse tempo das mortes anunciadas.

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