• 18 de maio, 2024 11:52

O paradoxo de Aparecida. Por Marcos Leonel

ByTarso Araújo

out 15, 2021

Foto do texto: Carla Carniel/Reuters

 POR MARCOS LEONEL

COLUNA FALA LEONEL

PUBLICADA NO JORNAL LEIA SEMPRE

Não existe nada fora de contexto no fato de um presidente assistir a uma missa na Basílica de Nossa Senhora de Aparecida, no dia da celebração da padroeira do Brasil. A não ser que o presidente em questão seja Bolsonaro. São diversos fatores que agravam esse fato, que por insustentabilidade direta tornam esse episódio em desagravo profundo. As contradições e incoerências de fazeres e rotinas do governo Bolsonaro incluem a pachorra, o desdém, o cinismo, o empoderamento máximo da cara lisa, do sorriso estelionatário e do despudor moral. É normal que esse ato de Bolsonaro seja reconhecido como campanha eleitoral antecipada, da mesma forma que é normal todas as anormalidades de Bolsonaro em usar como desodorante íntimo a fé, a religião, a bíblia e o nome de Deus.

O que está fora do contexto nessa narrativa incluída na agenda presidencial é o próprio presidente, não só pelas implicações políticas de um batismo de conversão evangélica, barganhado pelo apoio mútuo, mas também, e muito mais, pelas satisfações diretas aos católicos pelo insulto ético espiritual que isso representa. Se para Bolsonaro foi um teatro de patifarias ter sido batizado no Rio Jordão, pelo pastor Everaldo Dias Pereira, então presidente do PSC, que logo em seguida foi preso acusado de corrupção no governo de Witzel; para Dom Mauro Morelli, Bispo Emérito da Diocese de Duque de Caxias, e mais centenas de milhares de católicos espalhados pelo Brasil, a negação do batismo católico de Bolsonaro não é uma coisa que se possa descartar como mero cotidiano, como se faz com aparelhos de barbear, camisinhas ou sacolas plásticas de supermercados em que os proprietários sejam “terrivelmente evangélicos”. É óbvio que o termo tratado aqui é dignidade.

Se é impossível esconder um elefante entre as prateleiras de uma vidraçaria, mais ainda é impossível esconder as ligações terrivelmente neopentecostais e criminosas de Bolsonaro e sua base eleitoral. O seu principal escudeiro político, pronto para mentir descaradamente para defender a distopia de uma honra ilibada do clã em governo, é o pastor Silas Malafaia, um personagem respeitadíssimo em meio àqueles que cultivam a estranha arte de roubar os fieis através do medo e de sofisticadas técnicas de sedução estelionatária. É Silas Malafaia que aparece em um vídeo que circula nas redes sociais, prometendo o milagre da casa própria, um milagre vindo diretamente de Deus, desde que o fiel deposite na conta dele, o pastor das almas perdidas, o valor de uma parcela da mensalidade do imóvel financiado, ou uma parcela equivalente ao preço do aluguel mensal, que aí sim, só depois do depósito, Deus interferirá, mesmo que esteja ocupado em demasia, salvando pessoas da fome que assola o Brasil e o mundo. Segundo Silas Malafaia, é só pagar.

Seria inevitável que as águas do Rio Jordão fossem incapazes de apagarem essa sujeirada toda em nome de Deus e da família tradicional brasileira. O conservadorismo da ladroagem e da patifaria oficial brasileira não é um fenômeno simples e frágil de tal forma que possa ser limpo em um piscar de olhos, muito menos por um simples batismo. Se um rio considerado sagrado por muitos é impotente em sua vazão histórica, o que dirá então do poder purificador de pias batismais de outras religiões, incluindo a católica. A maior insolência em todo esse episódio que ilustra a esquisita conduta moral e religiosa da sociedade brasileira está em quem acredita, sendo inocente ou não. Nem sempre a crença é sinônimo de fé, nem sempre a fé é cega, como também nem sempre Deus está onde os seres humanos professam devoções e adorações fanáticas. A única peregrinação para a evolução espiritual e para a civilidade na terra é feita na estrada do respeito e do amor ao próximo. Não há outra assertiva possível. No entanto, amar ao próximo é tão difícil quanto um camelo passar no buraco de uma agulha. Eis a profecia da sordidez humana.

O paradoxo se amplia mais ainda quando se juntam às peças do engodo religioso em questão, todos aqueles e aquelas, sendo autoridades católicas ou simples fieis que sentam nos bancos das igrejas e imploram a remissão dos pecados, que se confessam, e comungam a hóstia sagrada pelos ritos apostólicos, mas que lavam as mãos como Pilatos fez, e apoiam o governo nazista de Bolsonaro, sem nenhum medo do inferno, dirá do purgatório. Isso está nas mãos de Deus? Será que apoiar uma pessoa sem nenhum escrúpulo, sem nenhum indício de humanismo é apenas um lapso de incompreensão do amor pregado por Cristo? Qual é o paradigma dogmático que revela essencialmente que Deus entrou ou saiu na companhia de Bolsonaro na Basílica? É fácil perceber que a metafísica é mesmo uma realidade para poucos, incluindo os ateus. Mas, é factível e intensamente perceptível, mesmo para o mais desatento discípulo da santidade, reconhecer de imediato quais são os povos e as tribos que irão vender suas capas e comprarem suas espadas, como evangelizou Bolsonaro através de Mateus. É fácil reconhecer esse tipo de discípulo e discípula da violência divina, pois eles frequentam com fé todos os ambientes em que Deus é transformado em um jogo.

 

 

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