O VERBO FEMININO
ÍRIS TAVARES
A FOME NA ECONOMIA DO HORROR
A miséria e a fome estão impregnadas na obra poética de Manuel Bandeira (1886-1968). É uma linguagem de sofrimento, dor, tristeza e crueldade. Nos perguntamos sobre o que mais pode ilustrar? Sem dúvida o cenário de uma conjuntura social e política que perdura ao longo dos anos e que vem colapsando no amontoado de crises provenientes desse ambiente de conflitos e flagelo social, da desumanização e da barbárie que avança sobre nós. O bicho de Manuel é uma versão da monstruosidade de um sistema econômico de horror que copta a sociedade, destrói a natureza e rouba da humanidade a sua essência. “Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos”.
Urge que se reflita sobre o modelo de exclusão como uma ferramenta afiada e bem aplicada nesse jogo de cartas marcadas, onde viver bem é um privilégio e não um direito. É o substrato de uma lógica de profunda dominação sobre as pessoas e as coisas, tanto que a paisagem da pobreza está vinculada as montanhas de lixões, uma arquitetura grotesca que cerca as cidades, o campo e os corpos hídricos. É o desvirtuamento da importante função de um corpo hídrico, o desvio de um reservatório natural com possibilidade de atender as necessidades das espécies pelo liquido precioso e fundamental a sobrevivência dos seres vivos. Tornaram-se alvos da degradação e da sanha inescrupulosa daqueles que estão a serviço do capital.
A destruição dos recursos naturais afeta diretamente os sistemas agroalimentares. Os últimos relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU), apresentam importantes indicadores sobre a situação da fome no mundo que continua a aumentar. “Mais da metade de todas as pessoas enfrentando a fome (418 milhões) vive na Ásia; mais de um terço (282 milhões) na África; e uma proporção menor (60 milhões) na América Latina e Caribe”. No atual contexto brasileiro verifica-se à ausência, senão o rebaixamento de políticas públicas de combate à fome, aliado ao fato de que a pandemia da COVID-19, acentuou mais ainda as vulnerabilidades sociais e crônicas que se perpetuam no amago das populações e grupos periféricos. A população de famintos no Brasil de hoje, beira 20 milhões de pessoas. Manuel continua denunciando o bicho. “ Quando achava alguma coisa/ Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade”.
Essa fome vem acompanhada de muitas mazelas, porque ela é um gatilho para todas as demais violências praticadas contra as pessoas pobres, idosos, crianças, negras, indígenas, juventudes, mulheres e LGBTQIA+. A fome de educação, de cultura, de oportunidades, de respeito e solidariedade é uma abstração paralela que convive no limiar do desejo mais profundo e silencioso daqueles e daquelas que digladiam todos os dias nos becos, nas ruas de sangue desse Brasil que insiste em banir a felicidade. “O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato”.
Por isso ao refletir sobre esses números da fome nos deparamos com muitas indagações. A fome gerada nesse mundo serve a algum propósito? Será o racismo uma pratica reacionária das pessoas que sentem o desejo de humilhar e sub julgar aqueles que lhe inspiram as diferenças? A fome dos brancos e dos negros alimentaram por muitos séculos o capricho dos senhores feudais, da indústria, do capital financeiro, dos capitalistas e dos moinhos de vento que se misturaram nesse ritual da fome, através do tempo, trazendo até nós essas vozes declamadas com muito fervor. “O bicho, meu Deus, era um homem”.