• 20 de maio, 2024 03:33

A barbárie é coletiva. Por Marcos Leonel

ByTarso Araújo

fev 4, 2022

 Foto via: @PTRJ13 no Twitter

POR MARCOS LEONEL/ COLUNA FALA LEONEL

Todos continuam em suas casas. Alguns escanchados em suas redes sociais, outros prontos para revidar, uns tantos se reconhecendo em fúria desmedida, justificada pelo conservadorismo estrutural de usar a pá e o tapete. Todos continuam em suas casas, menos as notas de repúdio. Eu estou em minha casa escrevendo. Moïse Kabamgabe está duplamente fora de casa, foi assassinado a pauladas, socos e pontapés: não verá mais o Congo madrasta e nem mais o seu lugar de refugiado em um país padrasto. A morte de Kabamgabe diz mais sobre o Brasil do que sobre o Congo. É completamente reprovável politizar a dor dos familiares e o infortúnio redundante do africano, mas é necessário identificar as ramificações dessa morte social. Não todos, embora muitos são Kabamgabe e muitos são mais ainda linchadores.

O Congo está presente na história do Brasil faz tempo. É um dos países africanos mais usados pela corte portuguesa no tráfico de escravos para o Brasil colônia e para o Brasil imperial. Inúmeros navios negreiros aportaram na costa brasileira vindos do Congo. Mais de um milhão de negros e negras foram comercializadas pela elite brasileira. Houve até uma regulamentação desse crime hediondo: um alvará da corte portuguesa, de 11 de janeiro de 1758, determinou “a liberdade de comércio” em Congo, Angola, Loango e Benguela, proibindo a formação de monopólios. Congo e Brasil seguem rumos paralelos, mas muito próximos, depois do ciclo colonial do mercado da carne negra. O Congo nunca se livrou do aporte dos golpes militares e das milícias. O Brasil também não. Hoje as elites e os militares tornaram o Brasil colônia do Brasil deles. Em uma trajetória infame o Brasil de hoje corre em marcha acelerada para ser o Brasil do Século XIX: latifundiário, exportador de produtos agrícolas e explorador da mão de obra escrava.

O Rio de Janeiro continua sendo a velha capital do Brasil imperial. Moïse Kabamgabe foi assassinado pela milícia carioca, que controla toda espécie de carne barata no mercado brasileiro. A milícia carioca é uma espécie de guarda clandestina da família real contemporânea, chegou e tomou de conta. Moïse Kabamgabe morreu por cobrar o calote de duas diárias do seu subemprego. Sendo que um dos acusados de matar o congolês, Aleson Cristiano, disse que as agressões foi “para extravasar a raiva”. Aleson agrediu com um bastão. Moïse morreu depois de mais de 30 pauladas. A raiva de Aleson foi uma raiva empoderada pelo Estado, quando o presidente que governa em família uma teocracia, prega em nome de Deus, que: “uma sociedade armada jamais será escravizada”. O subemprego, o desemprego, a fome e o Estado militarizado, com sobras milicianas, são em ruma o rebotalho da raiva que precisa ser extravasada contra o povo brasileiro, dirá contra imigrantes, dirá contra congoleses, que há muito são escravos.

A defesa do calote brasileiro não se restringe ao racismo ou ao xenofobismo contra imigrantes africanos. A defesa do calote do Brasil contra o povo brasileiro é uma façanha histórica, comemorada euforicamente pelos Três Poderes. Existe permanentemente no Brasil o direito sagrado das elites manterem o tráfico de escravos. O maior requinte dessa manobra exploratória é contar com a anuência da própria sociedade escravizada. Nunca na história da república brasileira, que foi estabelecida por um golpe militar, com apoio dos latifundiários conhecidos como Republicanos de 14 de maio, insatisfeitos com a libertação dos escravos, houve tamanha condescendência de boa parte da população brasileira, em escolher euforicamente seu próprio aniquilador. O povo brasileiro vem sofrendo muitas pauladas, socos e pontapés. Nunca de forma tão escancarada. Nunca a sociedade brasileira aceitou, vergonhosamente, tanto espancamento, tanta humilhação, tanta submissão. Mas a sociedade ilibada toma banho de chuva em notas de repúdio.

A família de Moïse Kabamgabe pede justiça. É uma família de imigrantes africanos. Milhões de famílias brasileiras pedem justiça há muito mais tempo histórico, sendo elas imigrantes na própria pátria. As famílias brasileiras fogem do poder exterminador do Brasil, dentro do próprio Brasil. As carcaças de frango, as pelancas e os ossos do gado abatido, sabem exatamente o que é isso, pois eles foram transformados no refúgio de grande parte das famílias brasileiras. O Brasil dos farrapos, dos pregos e dos papelões dos muros sociais, dos espancamentos em supermercados, vítimas do justiçamento da justiça brasileira, são imigrantes brasileiros refugiados no Brasil. Todos eles falam uma língua estranha, pedem justiça em uma língua estranha à própria justiça. Nunca são atendidos. Não há justiça para essa gente de língua estranha. A farsa da proclamação da República continua até hoje: o golpe militar contra o Império foi assumido pelo marechal Deodoro da Fonseca, um monarquista. A sociedade que continua sendo envergonhada até hoje, sem reação nenhuma, é a mesma que tangia os escravos para o martírio, aceitando as chicotadas coletivas.

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