• 18 de maio, 2024 13:39

Reinação da lua. Por Íris Tavares

ByTarso Araújo

out 22, 2021

A vida e a arte de Ciça do Barro Cru

Página 11

Texto escrito pela historiadora e colunista do Leia Sempre Íris Tavares revela um pouco da vida e da arte de Ciça do Barro Cru, uma das mais importantes artesãs da Região do Cariri. Com sua arte não ganhou muito dinheiro, mas notoriedade devido à elegância e modo de fazer suas peças. No texto, Íris nos revela a vida desta grande artista caririense.

.POR ÍRIS TAVARES/COLUNA O VERBO FEMININO

PUBLICADA SEMANALMENTE NO JORNAL LEIA SEMPRE

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REINAÇÃO DA LUA

CÍCERA MARIA DE ARAÚJO (Ciça do Barro Cru). Nasceu em 07 de março de 1915, no sítio São José, em Juazeiro do Norte Ceará. Um ano de seca terrível em que todo o nordeste brasileiro ardia mediante a visão apocalíptica da fome e da miséria. Faleceu as dezoito horas e trinta minutos, logo depois do ângelus no dia 04 de setembro de 1991. Passaram-se trinta anos desde a partida da mãe do barro.

Seu pai chamava-se Pedro Araújo. Natural de Garanhuns, Pernambuco e sua mãe Quitéria Maria da Conceição de Quipapá, Sergipe. Ainda criança morou em Santana do Cariri com a família que buscava se situar melhor na labuta do campo, na atividade agrícola e do roçado, mas logo a família retornou para Juazeiro e naquela ocasião a menina Ciça completava sete anos de idade. Em 1932, em destaque o ciclo acentuado da seca se apresentava desafiando os sonhos e a sanidade daquela que se fizera menina-moça mendigando pelas ruas de Juazeiro e Crato para fugir da dor e da fome. Viu minguar a vida de suas duas irmãs queridas, ambas faleceram em consequência da fome e do rigor da pobreza e suas mazelas impregnadas na família Araújo. O matrimonio chegou muito cedo na sua vida, assim como a viuvez. Depois conheceu outros noivos e conviveu maritalmente com eles em períodos distintos de sua vida, até conhecer Januário Rozeno a quem se afeiçoou bastante e pode envelhecer ao seu lado.

Começou a manusear o barro aos 25 anos de idade e depois disso a sua vida passou a ter maior sentido. Assim dizia: Dona… nunca tive cobiça, nem mal já desejei, da minha aldeia eu avisto o mundo, já viajei luas, montei feiras, fiz barro da cara, do barro fiz cara, toquei a mão de Deus. Essa artesã, pessoa simples, não desfrutou das facilidades da farta e boa vida. Essa mulher do povo ao conversar com o barro extraiu dele conexões imagináveis com toda sua ancestralidade. A noiva terra aceita casar-se com a humanidade? Por isso todos os anos festejava o aniversário de casamento e a inauguração da arte, “a renovação”. Rezava frente ao oratório e agradecia a Virgem Maria, Nossa Senhora das Dores e Padre Cícero de quem era afilhada. Afastada precocemente do convívio escolar e largada à terra, a nossa artesã teve sua vida duramente marcada pela exclusão do sistema econômico capitalista ceifador de vidas, não fosse a riqueza do processo criativo e a magia de se reinventar, a humanidade estaria esvaziada de sua essência e da boniteza de um ser feminino que nos inspira sabedoria e os saberes que a modernidade insiste em ignorar. São princípios que permaneceram vivos através de um parâmetro, ouso dizer, o mais puro da arte rural. A obra da artesã expressa um rico imaginário social, figuras moldadas na fragilidade do barro cru, uma especialidade de Ciça. Do leiteiro ao lenhador, do médico a enfermeira, misturadas as representações da natureza animal, vegetal salpicados de um colorido florestal. A sua produção alcançou dois níveis distintos como as peças individuais: aves, animais domésticos e fantásticos, Maria Fumaça, violeiro, João Tingó, padre, mulher rendeira, pessoas em seus afazeres, santos e demônios, etc. E as obras de conjunto, em que encontramos maior expressividade, segundo sua visão e sensibilidade estética na elaboração de cenas coletivas de imensa complexidade. São reisados, farinhadas, bandas de pife, enterros de anjos, procissões, casamento na freguesia, bando de cangaceiros, renovações e lapinha, etc.

Ciça do Barro Cru foi tema de documentários para o cinema e televisão. Trabalho primoroso, tanto quanto maravilhoso realizado por Rosemberg Cariry e Oswald Barroso. E mais recente a Organização Não Governamental Beatos recebeu de Rosemberg a doação e a guarda de parte do acervo de Ciça. Composto de esculturas de barro, imagens fotográficas e uma belíssima pintura óleo sobre tela que retrata a ceramista, mulher e artesã. O acervo está exposto a visitação na Casa Museu da Beatos – Memorial da Tradição Popular. Sala do Barro. Notabilizou-se pela criação de suas máscaras de barro, tanto que figurou como capa do livro “Artistas da Cerâmica Brasileira”, editado em português e alemão pelo projeto “A arte contemporânea brasileira” da Wolkswagen no Brasil, no ano de 1985. A publicação reúne 42 ceramistas, eruditos e populares, que apresentam cerca de 160 trabalhos. Dentre os que fazem parte do livro, destacam-se o mestre Vitalino, Aldemir Martins e Zé Caboclo, além da nossa querida Ciça do Barro Cru. Ela que nos acolheu numa tarde distante do ano que findava a década de oitenta. Nos debulhamos em diálogos, curiosos e sinceros, tanto que se declarou ressentida, pois sequer havia recebido um exemplar da referida publicação.

Ah! Dona

O mundo é enganador

E a flor … e a flor …

Do barro do meu amor

Do ventre da terra

Ah! Meu nosso Senhor, meu Padim.

Dona,

Deixo para o mundo

Meu tesouro,

Minha herança

Filhinha querida

Deixo nesses materiais preciosos

As minhas impressões

Brincos, máscaras, figuras de barro

Deixo esse tacho

Um velho tamborete

O candeeiro do santo

Os meus colares

O meu batom é pra Dasdô.

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