• 18 de maio, 2024 01:53

O racismo que nos atravessa. Por Íris Tavares

ByTarso Araújo

set 24, 2021

Foto de Ronald Tavares

COLUNA O VERBO FEMININO

POR ÍRIS TAVARES

O RACISMO QUE NOS ATRAVESSA

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Era vista de longe, embora a última marcação fosse a porteira, mas daquele ponto até o velho Casarão do Infincado, havia uma grande distância a percorrer o caminho pedregoso e a vegetação seca com espinhais, unha de gato, xique-xique e as cactáceas a exibirem uma resistência hercúlea em meio a natureza severa do semiárido. Localizada no distrito de Genezaré município de Assaré, aquela ocupação tem registro que dista da segunda metade do século XIX. Uma terra que foi ocupada para sediar o engenho pavoroso da senzala de escravos, cujo proprietário Gonçalo Batista Vieira, Barão de Aquiraz, exercitou a tirania cruel de feitor com título da nobreza. Movimentou-se do litoral cearense para microrregião da Chapada do Araripe trazendo consigo os gritos e as dores de uma África transplantada a ferro e fogo. O Barão não suspeitava de que no século seguinte aquele território seria o berço do poeta Patativa do Assaré, o genial e maior poeta popular do planeta. Um defensor das liberdades e da igualdade, autor do mais lindo poema intitulado Mãe Preta. É fato que o pesadelo tem ramificações, alimenta-se de várias formas, nos dias atuais o sistema capitalista permanece com base na escravidão paga e no pensamento anacrônico que nega a autonomia, o pensamento libertário e a convicção de que a mudança é possível. 

Pessoas das comunidades rurais do entorno do Casarão do Infincado observam aquela estrutura de pedra, madeira, areia e outros materiais utilizados na sua edificação, também suspeitam que a argamassa naquele volume considerável custou a vida, o sangue e o sofrimento de centenas de pretos e pretas que tiveram suas vidas abortadas pela estupides do pensamento colonial que prevaleceu nos 400 anos de história escravocrata plantada nesse país. O racismo é uma nódoa do crime que perdura até hoje bebendo da fonte da impunidade que legitimou a casa grande e a senzala. A primeira abrigava com conforto, cuidava e acolhia os mandantes e assassinos seculares dos pretos e pretas. Sem julgamento. A segunda funcionava como anexo e servia para controlar, humilhar e exigir a servidão dos escravos do nascer ao pôr do sol.

A elite branca do Ceará que se diz herdeira das Sesmarias, na atualidade respondem como latifundiários, banqueiros, empresários do agronegócio e seus derivados. Foi muito eficiente em promover um apagão na recente história. O que são quatro séculos de opressão comparados a crueldade obstinada do clã associado ao garimpo de riquezas? Por isso a nossa literatura carece de reparos. Há uma ausência das narrativas e das vozes dos pretos e pretas, dos sujeitos dessa história, constantemente, ameaçada de ser banida. Memória e verdade são imprescindíveis nesse tempo de cegueira política e obscurantismo.

Sobre a imponência do Casarão do Infincado, a sua solidez que espantosamente resiste as intempéries da natureza, nos provoca olhar para aquela engenharia e enxergar que por trás dela estão as marcas dos sonhos e sentimentos de pessoas humanas transformadas em escravas e obrigadas ao sofrimento atroz de uma empreitada grandiosa na construção daquela habitação que seria o seu próprio calvário. Sem água, debaixo do chicote, com alimentação escassa e sob um sol inclemente. Quantos gritos? Quantas vidas? Quantos nomes? Quantas mutilações? 

O renomado geógrafo Milton Almeida dos Santos foi o primeiro preto brasileiro a receber o prêmio Vatrin Lud, similar ao Prêmio Nobel, mas especifico da geografia. Ele que rompeu certos paradigmas e dedicou-se aos altos estudos. Deixou um importante legado, além de 40 obras publicadas refletindo sobre os cenários urbanos, sobre a globalização e as questões das desigualdades.  “Ser negro no Brasil é, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá embaixo, para os negros”.

 

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